O instituto da indisponibilidade de bens tem agora uma atualização regulatória com a edição do provimento 188 pela CNJ - Corregedoria Nacional de Justiça, de dezembro de 2024. Aproveitando a necessidade de compatibilizar a CNIB - Central Nacional de Indisponibilidade de Bens com o SERP - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, o CNJ tornou formal algumas características sedimentadas da indisponibilidade de bens. A indisponibilidade é uma medida extrema. Implica a restrição dos direitos de propriedade, retirando do proprietário a faculdade de dispor voluntariamente da coisa. No âmbito do Direito Imobiliário, a indisponibilidade deve se efetivar com a averbação do decreto de indisponibilidade de bens, o que impossibilita o registro de transmissões de direitos reais ou sua oneração. Ressalta-se que a ordem de indisponibilidade não impede a lavratura de escrituras1, vedando apenas o registro dela no Registro de Imóveis (momento da efetiva transmissão em razão do art. 1.227 do Código Civil). Dada a intensidade da limitação, a indisponibilidade sempre é encarada como uma medida de exceção2. Sua aplicação comumente busca evitar a dilapidação do patrimônio pelo devedor, sendo notada historicamente em ações judiciais que dizem respeito ao interesse público. Panorama da indisponibilidade Em sua origem, durante a Era Vargas, a medida visava garantir o erário. Destacava-se a restritividade prevista pela legislação na aplicação do instituto, tendo como alvos apenas os réus por crimes ou contravenções relacionados à "aplicação ou ao uso indébito ou irregular dos dinheiros ou haveres públicos". Como ensina Sérgio Jacomino: "o decreto 19.630/31 declarava que continuava expressamente proibida 'a alienação, ou oneração, de quaisquer bens, moveis, ou imóveis, ações, ou direitos pertencentes às pessoas' a que se referia o decreto 19.440/30 (arts. 9º, 12 e 43). Para disposição de bens imóveis atingidos exigia-se a expedição de alvarás pela autoridade competente."3. A Constituição Federal4 manteve o tratamento excepcional à indisponibilidade de bens, aplicando-a como sanção à prática de atos de improbidade administrativa. Essa previsão é observada na lei 8.429/92 ("Lei de Improbidade Administrativa"), que permite o decreto de indisponibilidade após provocação, e na lei 8.397/92, que prevê que a indisponibilidade de imediato quando da decretação de uma medida cautelar fiscal. A lei 11.101/05 ("Lei de Falências") também introduziu a possibilidade de formulação de pedido de indisponibilidade de bens contra: (i) os sócios de responsabilidade limitada, (ii) os controladores e (iii) os administradores da sociedade falida. Nessa hipótese, a indisponibilidade de bens não é geral, devendo ser determinada de forma compatível com o dano provocado por decisão judicial de ofício ou respondendo a um requerimento das partes. Indica-se também o art. 185-A da lei 5.172/66 ("Código Tributário Nacional"), com redação dada pela LC 118/05, que prevê que o juízo pode decretar a indisponibilidade de bens até o valor total exigível em execuções fiscais em que o executado foi citado e não foram encontrados bens para satisfação do débito. Embora a indisponibilidade tenha previsão para hipóteses específicas, o Poder Judiciário passou a se utilizar também do instituto como medida executiva atípica. Nesse contexto, tem-se observado em uma banalização do instituto, muitas vezes aplicado para garantia de "obrigações de bagatela - ou teratológicas, como as originadas de pequenas dívidas trabalhistas que gravam e embaraçam todo o patrimônio de construtoras ou de bancos"5. Com o julgamento do REsp 1.963.178/SP, exemplificativo dessa posição, a Terceira turma do STJ reconheceu a possibilidade de utilização da indisponibilidade como medida executiva atípica, condicionando-a ao exaurimento dos meios típicos. Extrai-se do julgado que: "A adoção do CNIB atende aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, assim como não viola o princípio da menor onerosidade do devedor, pois a existência de anotação não impede a lavratura de escritura pública representativa do negócio jurídico relativo à propriedade ou outro direito real sobre imóvel, exercendo o papel de instrumento de publicidade do ato de indisponibilidade. Contudo, por se tratar de medida executiva atípica, a utilização do CNIB será admissível somente quando exauridos os meios executivos típicos, ante a sua subsidiariedade, conforme orientação desta Corte Superior." O provimento 188 O provimento 188 busca regulamentar a indisponibilidade de bens com a fixação de conceitos já consolidados do instituto, pouco inovando como regra geral. A ordem de indisponibilidade deverá ser proveniente de autoridade administrativa ou judicial6. Os oficiais de Cartórios de Registro de Imóveis devem consultar a CNIB diariamente e prenotar de ofício eventuais ordens nas matrículas em nome dos alvos, ou seja, nas que figurem como proprietários ou detenham direito de aquisição. Há previsão de que, na hipótese de aquisição de bens pelo alvo, o oficial promova o registro da transmissão e, ato contínuo, a averbação da indisponibilidade sem que o adquirente seja previamente notificado. O acesso à CNIB será público, sendo gratuito para aquele que é alvo de ordem de indisponibilidade e cobrado para terceiros, entidades de proteção de crédito e demais interessados. O provimento 188 também reformula o regramento para transmissões involuntárias (arrematações, alienações por iniciativa particular ou adjudicações). Se antes o CNJ previa a necessidade de indicação de "prevalência da alienação judicial em relação à restrição oriunda de outro juízo ou autoridade administrativa a que foi dada ciência da execução", agora se admite que a autoridade judicial apenas preveja o cancelamento das constrições oriundas de outros processos. O texto do provimento deixa de esmiuçar a nova prerrogativa da autoridade judicial, não indicando o tratamento adequado em situações com créditos privilegiados ou com preferência de penhoras. A decisão parece tentar afastar a discussões processuais da rotina registral. Todavia, o tema exige cautela dada a possiblidade de anulação da alienação judicial. O CNJ esclareceu que a averbação da indisponibilidade não impede a alteração da especialidade objetiva do imóvel. Permanece possível a retificação administrativa, a unificação, o desdobro, o desmembramento, a divisão, a estremação ou a REURB7. Decorre do provimento 188, também, a estruturação da forma de cobrança dos emolumentos pela averbação da ordem de indisponibilidade. O pagamento da averbação ocorrerá posteriormente, concomitante ao pagamento da averbação de seu cancelamento. Assim, o oficial deverá realizar a averbação da indisponibilidade sem o recolhimento dos emolumentos, que serão cobrados futuramente do interessado pelo cancelamento da restrição, salvo se esse for parte do processo em que originada a ordem de indisponibilidade e conte com a benesse da justiça gratuita8. Importante destacar que após o cadastro da ordem de cancelamento da indisponibilidade na CNIB, o oficial do Cartório de Registro de Imóveis fica "obrigado a averbar o seu cancelamento", desde que pagos os emolumentos quando cabíveis. Assim, o único canal de informação das ordens de indisponibilidade será a CNIB. O provimento, inclusive veda "a utilização de quaisquer outros meios, tais como mandados, ofícios, malotes digitais e mensagens eletrônicas". A despeito da relevância das atualizações indicadas acima, o provimento 188 traz duas alterações que chamam muita atenção: (i) a instituição de uma ordem de preferência de indisponibilidade pelo alvo e (ii) a definição do momento de início dos efeitos da ordem de indisponibilidade. Quanto à ordem de preferência, o art. 320-K do provimento 188 possibilita que os proprietários ou titulares de direitos reais sobre imóveis elejam bens sobre os quais deverão recair eventuais ordens de indisponibilidade. A indicação de preferência não vincula os órgãos do Poder Judiciário ou as autoridades administrativas, que ainda poderão determinar a indisponibilidade de imóveis não indicados. Entretanto, cria-se uma base indicativa importante, especialmente para as hipóteses de ordens de indisponibilidade de patrimônio determinado, como aquelas provenientes de execuções fiscais ou de ações de falências. A formação, pelos devedores, de uma base indicativa de preferência representa outro avanço operacional. Embora já houvesse previsão de ordens de indisponibilidade de imóveis específicos (ou um patrimônio determinado), a CNIB não dava suporte a tais solicitações, obrigando as autoridades judiciais ou administrativas a recorrerem a ofícios e mandados. Agora, as autoridades podem, via CNIB, determinar a indisponibilidade de bem específico ou de bens até um montante determinado. Todavia, o provimento perdeu a oportunidade de prever um mecanismo que defina um valor limite para as ordens de indisponibilidade. Assim, entende-se que caberá à autoridade judicial ou administrativa calcular a equivalência entre o patrimônio bloqueado e o direito que se busca assegurar com a ordem. Poderia o CNJ ter indicado balizas claras para realização desse cálculo (adotando a utilização do valor venal ou de referência dos imóveis ou o valor atribuído pelo proprietário para fins de declaração tributária como indicativo do patrimônio bloqueado). Ressalvada essa questão operacional específica, tal modernização da CNIB tende a gerar um impacto prático positivo no mercado imobiliário. A possibilidade de limitar o alcance de ordens de indisponibilidade por meio da CNIB confere maior eficiência às ordens que incidem sobre um patrimônio distinto. Espera-se que essa facilidade incentive a adoção de ordens de indisponibilidade específicas, em vez daquelas que abrangem o patrimônio total do alvo, contribuindo para a manutenção de bens no mercado e a livre circulação das riquezas. Já a definição do momento de início dos efeitos da ordem de indisponibilidade no provimento 188 é bastante controversa. O provimento prevê em seu art. 320-I, § 3º, que "a superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos, ainda que anteriormente prenotados, salvo exista na ordem judicial previsão em contrário". Referida disposição tem sido objeto de críticas9, especialmente por excepcionalizar o princípio da prioridade registral em relação à indisponibilidade de bens, sem fundamento legal, causando insegurança jurídica à sociedade. A previsão destoa de normas de corregedorias estaduais como São Paulo e Minas Gerais10, que prestigiam a prioridade e a segurança jurídica ao possibilitar o registro dos títulos que estejam previamente prenotados quando do recebimento da ordem de indisponibilidade. Há que se ressaltar que o oficial de registro de imóveis deve consultar diariamente a CNIB e prenotar tão logo as ordens de cancelamento. Além disso, a consulta à CNIB pelo notário é condição da lavratura de escritura de transmissão de direitos reais, sendo o resultado da consulta consignado no ato. Assim, a hipótese do art. 320-I, § 3º, trata especificamente do adquirente de boa-fé, que será surpreendido por um decreto de indisponibilidade não averbado na matrícula e posterior à aquisição do bem. Em situações similares, o Poder Judiciário tem entendido pela prevalência da aquisição de boa-fé em detrimento das ordens de indisponibilidade supervenientes, como se observa em julgados do STJ11, e do TJ/SP12. De igual forma, a legislação tem optado por prestigiar o adquirente de boa-fé, destacando-se a nova redação do art. 54 da lei 13.097/15, dada pela lei 14.382/22, que reforça a proteção ao adquirente de boa-fé com o simples exame da matrícula do imóvel. O provimento 188 caminha em sentido diverso, criando situação de insegurança jurídica ao adquirente de boa-fé. Se o acesso à CNIB é público e os efeitos da indisponibilidade independem do registro, não há necessidade de ser realizada a averbação. De igual forma, não poderá o adquirente (que em tese está dispensado da emissão das certidões forenses em razão da regra do art. 54, inciso II, lei 13.097/15) se resguardar de uma decretação posterior de indisponibilidade contra o alienante. Esse mesmo adquirente será penalizado com o impedimento de registro e, por consequência, da não transmissão do imóvel, sendo que não houve de sua parte qualquer desídia. Entende-se, portanto, que o dispositivo que relativiza o princípio da prioridade peca formalmente ao avançar em competência legislativa, negando vigência ao art. 186 da lei 6.015/73 ("Lei de Registros Públicos"). Além disso, o dispositivo inova, contrariando histórico regulatório e jurisprudencial, bem como o próprio racional do instituto e do sistema registral público. A judicialização de situações de indisponibilidade superveniente não será inesperada se o CNJ optar por manter a posição do art. 320-I, § 3º, do provimento 188. Conclusão O provimento 188 representa avanço na padronização do instituto da indisponibilidade e marco importante na atualização do Direito Imobiliário com o SERP. Entretanto, o provimento gera preocupação dos operadores de direito ao inovar e prever que a superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos, ainda que anteriormente prenotados. Essas questões indicam a oportunidade de um ajuste legislativo que alinhe o instituto aos princípios constitucionais e às normas históricas do Direito Registral brasileiro. Uma solução de lege ferenda poderia também estabelecer um tratamento isonômico à indisponibilidade, mitigando arbitrariedades e desproporcionalidades na atuação dos juízes. Caso a posição atual seja mantida, não se pode descartar uma ampliação da judicialização, sobretudo em cenários envolvendo a boa-fé do adquirente. Assim, é essencial que futuras regulamentações busquem equilibrar a eficácia da indisponibilidade com a preservação da estabilidade jurídica e econômica. 1 Referida condição já constava do provimento 39 do CNJ, tendo sido mantido no art. 320-F do provimento 188. 2 Nesse sentido, Moacyr Pretocelli indica que: "Não é demais lembrar que à luz do princípio da livre circulação das riquezas, os bens em geral devem permanecer in commercium. Somente em hipóteses mui excepcionais, autorizadas expressamente por lei e mediante ordem fundamentada da autoridade competente, admite-se que bens determinados sejam retirados do comércio, tornando-se indisponíveis por seus titulares". 3 O autor apresenta um relato histórico do instituto em artigos para o portal Migalhas (disponível aqui. Acesso em 15/1/25). 4 CF/88. Art. 37, § 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. 5 Novamente conforme lição de Sérgio Jacomino, no artigo supracitado. 6 Rememora-se que o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, já tinha formulado entendimento de que "a intervenção drástica sobre o direito de propriedade exige a atuação do poder Judiciário", quando do julgamento da constitucionalidade do art. 20-B, inciso II, da lei 10.522/02, com redação dada pela lei 13.606/18, que permitia à União indisponibilizar bens com a mera apresentação de certidão e dívida ativa. 7 Fica impedida REURB se houver decisão específica que impeça a análise, aprovação e registro do projeto de regularização fundiária urbana, conforme dispõe o art. 74 da lei 13.465/17. 8 Questão que merece comentário é que o custo de averbação e cancelamento de averbações pode alcançar montantes excessivos quando observada a prática de se decretar a indisponibilidade do patrimônio indistinto de grandes intuições financeiras. Como alerta Sérgio Jacomino em "Indisponibilidade de bens - A CNIB 2.0 e a eficácia do Registro", não são raras as averbações e subsequente cancelamento de ordens de indisponibilidade, onerando empresas com maior patrimônio imobilizado (disponível aqui. Acesso em 28/1/25). 9 Indica-se o já citado "Indisponibilidade de bens - A CNIB 2.0 e a eficácia do Registro" e os artigos "Concentração legal, prioridade registral e a arrepsia da indisponibilidade regrada no provimento 188 do CNJ - arrebatamento matricial" de Douglas Gavazzi (disponível aqui. Acesso em 15/1/25) e "Averbação de indisponibilidade de bens - O CNJ prestigia a insegurança jurídica" de Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza (disponível aqui. Acesso em 15/1/25). 10 Provimento 58/89, Cap XX, Seção IV, Subseção II, 108.3, do TJ/SP e provimento conjunto 93/20, art. 850, § 2º e 3, do TJ/MG. 11 Vide recurso AgInt no REsp 1952193/SP, no qual se entendeu que "Caracterizada a boa-fé dos adquirentes, não deve subsistir a constrição do bem imóvel, ainda que não registrada em Cartório a promessa de compra e venda". 12 Vide apelação cível 1059731-53.2023.8.26.0114, em que expressamente dito que "Prova, ainda, sobre lavratura de escritura pública em data anterior ao decreto de indisponibilidade. Boa-fé da autora que deve prevalecer, ante inexistência de comprovação sobre fraude". Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/424106/provimento-188-indisponibilidade-de-bens-imoveis-no-cnj | ||
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